Os pilares narrativos de um regime
O autor estabelece uma analogia poderosa desde o início: se a Grécia antiga teve seus poetas para forjar mitos, a União Soviética teve seus líderes. Lênin, Stálin e outros figuras não foram meramente administradores de Estado; eles foram arquitetos de uma mitologia comunista elaborada.
Esta construção, alimentada por uma máquina de propaganda implacável e sustentada pelo medo, teve um objetivo claro: mascarar realidades brutais e consolidar o poder. A narrativa se tornou, assim, um instrumento tão crucial quanto o exército ou a polícia secreta.
O livro avança de maneira sistemática, desmontando os três grandes pilares dessa mitologia soviética. São eles: a lenda de uma revolução popular e espontânea em 1917, a narrativa da Guerra Civil como produto exclusivo da agressão capitalista, e o polêmico Pacto Ribbentrop-Molotov com a Alemanha nazista.
Cada um desses pontos é tratado não com opinião vaga, mas com o confronto direto entre a versão oficial e as evidências históricas.
A revolução como golpe de vanguarda
Um dos mitos mais persistentes é o do amplo e fervoroso apoio popular à Revolução de Outubro. A mitologia soviética pintou um quadro épico de massas insurgentes. No entanto, a realidade documental aponta para um cenário distinto.
O que ocorreu, na verdade, foi uma ação orquestrada por uma vanguarda bolchevique relativamente pequena, altamente organizada e armada. Este grupo aproveitou-se com maestria do vácuo de poder deixado pela queda do czarismo e pelo cansaço da Primeira Guerra Mundial.
Consequentemente, a tomada do poder assemelhou-se mais a um golpe político militar bem executado do que a um levante orgânico e generalizado. Esta visão é corroborada por uma gama de registros da época, que o autor apresenta de forma acessível.
O apoio popular, quando existia, era frequentemente fragmentado e condicionado por promessas como “paz, pão e terra“, que seriam subsequentemente negadas.

A guerra civil e o inimigo externo
Outra narrativa central da mitologia comunista é a que atribui a violência da Guerra Civil (1917-1922) quase que exclusivamente à intervenção das potências estrangeiras.
Este bode expiatório foi perfeito, pois justificava a repressão interna e a militarização da sociedade em nome da “defesa da pátria socialista“. No entanto, uma análise cronológica desfaz essa relação de causa e efeito. A repressão política dos bolcheviques, conhecida como Terror Vermelho, foi institucionalizada antes das principais intervenções militares estrangeiras.
Além disso, grande parte da violência foi direcionada internamente. Camponeses resistentes à coletivização forçada, trabalhadores em greve, marinheiros de Kronstadt e diversas minorias nacionais tornaram-se alvos do próprio Estado que alegava representá-los.
A fome, em casos como o Holodomor na Ucrânia, foi utilizada como arma política. Portanto, a narrativa do cerco capitalista serviu principalmente para ocultar uma guerra contra segmentos significativos da própria população russa.
O acordo tático com o nazismo
Talvez o capítulo mais incômodo para os defensores da mitologia soviética seja o Pacto Nazi-Soviético de 1939. Durante décadas, este foi o elefante na sala da historiografia comunista. O livro, no entanto, enfrenta o tema de frente, apresentando os termos do acordo e suas cláusulas secretas que delineavam a divisão da Europa Oriental entre Hitler e Stálin. Essa não foi uma manobra defensiva menor, mas um cálculo geopolítico de grande escala.
A colaboração que se seguiu foi real e profundamente constrangedora para a narrativa de “luta antifascista”. A invasão conjunta da Polônia em setembro de 1939 é seu exemplo mais vívido. Para entender a profundidade desta aliança, obras como Stalin’s Wars e Thunder in the East: The Nazi-Soviet War 1941-1945 oferecem contextos valiosos sobre a estratégia soviética antes do conflito direto com a Alemanha.

Metodologia e rigor da investigação histórica
O que diferencia “Mitologia Soviética” de um panfleto é seu compromisso com a documentação. O autor não se limita a expressar indignação; ele a fundamenta. A bibliografia é extensa e inclui fontes primárias e estudos acadêmicos robustos, muitos deles citados ao longo da resenha.
Esta abordagem confere uma autoridade técnica inquestionável ao trabalho, transformando-o em uma ferramenta para quem deseja ir além da superfície.
A obra de Thiago Braga não busca substituir uma dogmática por outra. Seu foco não é exaltar o capitalismo ou o liberalismo, mas sim demonstrar o processo metódico pelo qual a distorção da realidade foi elevada à categoria de doutrina de Estado.
Esse processo, afinal, não é exclusividade do comunismo russo, mas um manual de operações para regimes autoritários de diferentes matizes.
Fontes para um estudo aprofundado
Para o leitor que deseja se aprofundar, a obra dialoga com uma constelação de estudos sérios. Biografias como Stalin: New Biography of a Dictator e Stálin: Triunfo e Tragédia detalham a construção do culto à personalidade. Sobre a guerra e a diplomacia, Stalin, the pact with Nazi Germany and the Origins of Postwar Soviet Diplomatic Historiography é fundamental, assim como obras abrangentes como The Second World Wars e A Segunda Guerra Mundial.
Para compreender a natureza do terror, Lenin’s Terror e Genocide: The Power and Problems of a Concept oferecem perspectivas cruciais. Estas leituras complementares, muitas vezes citadas como referência, validam as teses centrais do livro e permitem que o leitor construa uma visão multidimensional do período.
A relevância contemporânea da discussão
Por que desenterrar esses fatos hoje? A resposta é simples: porque a mitologia soviética ainda respira. Seus ecos são perceptíveis em discursos políticos, em narrativas simplistas sobre “imperialismo” e em certas visões idealizadas de um passado que nunca existiu como contado.
No contexto brasileiro, onde debates ideológicos frequentemente recorrem a símbolos e exemplos distantes, entender a gênese desses mitos é um antídoto contra o revisionismo histórico.
O livro serve, portanto, como um corretivo necessário. Ele nos convida a separar o projeto teórico inicial — com todas as suas contradições — da prática concreta e burocrática do poder na União Soviética. Essa separação é o primeiro passo para uma discussão honesta sobre o século XX e seus legados complexos.
Uma leitura essencial e desconfortável
Ler “Mitologia Soviética” é um exercício de desilusão produtiva. É um livro que perturba, desafia certezas arraigadas e se recusa a alimentar narrativas convenientes.
Num panorama de polarização e de informações fragmentadas, essa abordagem é um verdadeiro serviço à claridade intelectual. A obra não oferece conforto ideológico, mas entrega algo mais valioso: a confrontação com as evidências.
Para colecionadores, estudantes de história ou qualquer pessoa interessada em entender como se constroem e perpetuam os grandes relatos políticos, este livro é indispensável na estante. Se você está pronto para essa jornada, adquira seu exemplar de “Mitologia Soviética” na Amazon.
Garanto que será uma daquelas leituras que, ao final, deixam marcas profundas e um olhar mais crítico sobre o mundo.
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